A difícil encruzilhada das decisões na COVID-19: como a deontologia implícita à Medicina Baseada em Evidências pode nos ajudar a entender as diferentes atitudes dos médicos nesse momento?
Miguel Prestes Nacul, TCBC-RS
[1] - Hospital de Pronto Socorro, Serviço de Cirurgia Geral - Porto Alegre - RS - Brasil
[2] - Colégio Brasileiro de Cirurgiões, Membro Titular - Rio de Janeiro - RJ ? Brasil
Marco Antônio Azevedo
[3] - Universidade do Vale dos Sinos, Faculdade de Filosofia - São Leopoldo - RS - Brasil
[4] - Hospital de Pronto Socorro, Clínica Médica - Porto Alegre - RS - Brasil
In itself, every high degree of circumspection in conclusions, every skeptical inclination, is a great danger to life. No living being might have been preserved unless the contrary inclination ? to affirm rather than suspend judgment, to mistake and fabricate rather than wait, to assent rather than to deny, to decide rather than be in the right ? had been cultivated with extraordinary assiduity.
(Nietzche, Aphorism 111, Gay Science 1882)
Uma das dificuldades que os médicos enfrentam nas decisões clínicas é como lidar com as evidências científicas de que dispõem, ou com a falta dessas. A pandemia de COVID-19 teve enorme impacto nas rotinas dos diferentes serviços de saúde, incluindo a área cirúrgica, que exigiram mudanças de protocolos assistenciais. Recomendações e dados de literatura científica permanecem limitados para orientar tratamentos em pacientes cirúrgicos, nesse período de disseminação comunitária do contágio1-3. Muitas condutas cirúrgicas bem estabelecidas passaram a ser questionadas em função de situações diretamente relacionadas à infecção pelo SARS-COV-2 e de acordo com medidas de saúde pública necessárias ao combate da pandemia1-3. Existem preocupações significativas e realistas com relação ao risco de disseminação viral durante procedimentos cirúrgicos1,4-6. Isso incluiria pacientes infectados e assintomáticos portadores. A proteção dos profissionais de saúde é fundamental, pois se colocam em risco alto de contaminação, sendo recursos únicos e não renováveis durante uma pandemia5. O uso desnecessário de equipamentos médicos em tempos de escassez, no fornecimento e na comercialização, deve ser evitado para preservar recursos como ventiladores, equipamentos de proteção individual (EPI), medicamentos etc. A destinação de leitos hospitalares prioritariamente para atendimento a doentes afetados pela pandemia torna-se muito importante com o aumento significativo do número de internações hospitalares. Por essas razões, cirurgias eletivas foram adiadas. Tratamentos de pacientes oncológicos foram adaptados, com postergação da cirurgia em prol de tratamentos medicamentosos. Mesmo cirurgias de urgência, como apendicites agudas e colecistites agudas, foram consideradas para tratamentos clínicos medicamentosos, baseados em estudos observacionais de séries de casos com níveis baixos de evidência7-9. A Society of Gastrointestinal Endoscopic Surgeons (SAGES) alertou, em suas recomendações quanto à resposta cirúrgica à crise de COVID-19, sobre o risco de contaminação viral durante videolaparoscopias e a necessidade de seleção adequada dos pacientes10. A exposição à fumaça cirúrgica pelo uso de eletrocirurgia ou bisturi ultrassônico e o uso de gás sob pressão em uma cavidade (pneumoperitônio de CO2 em procedimento videolaparoscópico) são fatores que potencialmente aumentam o risco de contaminação4,11. A decisão pelo uso de técnica aberta, minimamente invasiva ou não invasiva (tratamento clínico) deve se orientar por evidências científicas, mas sem esquecer tanto a segurança do paciente como a de toda equipe cirúrgica, e as alternativas possíveis de tratamento para cada doença e paciente nessa situação peculiar4,11,12.
Os três princípios que regem a Medicina Baseada em Evidências (MBE)13 são:
1. A busca da verdade é mais bem cumprida ao examinarmos a totalidade das evidências, ao invés de selecionarmos apenas uma amostra seleta dessas, sob o risco de não ser representativa e certamente menos precisa do que a totalidade;
2. Nem toda evidência é igual. Um conjunto de princípios pode identificar evidências mais confiáveis;
3. Apenas evidências não são suficientes. Tomadores de decisões avaliam os riscos e benefícios de estratégias alternativas de manejo no contexto dos valores e preferências dos pacientes.
Em situações de pouca evidência disponível, é natural que tenhamos de lidar com informações sistematicamente mais frágeis, provisórias e suscetíveis a vieses. Muitas vezes são essas evidências frágeis que compõem "a totalidade da evidência disponível" no momento. A interpretação dogmática da MBE poderia nos indicar que não temos razão para tomar condutas que não estejam amparadas em evidências fortes (revisões sistemáticas de estudos controlados, ensaios clínicos randomizados e estudos de coorte bem delineados). Esta conduta implicaria precaução exagerada, a qual pode acabar em inação em situações de conhecimento ainda nascente ou insuficiente.
Outra concepção considera que há o dever de oferecer aos pacientes o que a experiência indica como melhor alternativa. Em situações de gravidade e urgência, excessos de cautela podem pôr em risco a saúde ou até mesmo a vida dos pacientes.
Na atual pandemia de COVID-19, observamos confronto entre esses dois extremos. Representantes de ambos os lados criticam-se mutuamente e, ao que parece, há razões fundamentando ambos. Uma análise sobre as conclusões deontológicas implícitas extraídas da lógica da MBE auxilia nesse momento difícil. Podemos dispor os níveis de evidência discriminados pelas diferentes abordagens sobre a MBE em dois grandes grupos:
1. Estudos científicos que conferem sólida força epistêmica a conclusões clínicas sobre tratamentos;
2. Estudos científicos que conferem força epistêmica menor ou mais fraca.
De maneira geral, os estudos concluem que determinado tratamento é eficaz, efetivo ou eficiente (custo/efetivo), isto é, beneficiam o paciente, ou concluem que o tratamento é prejudicial. Outros estudos são inconclusivos (frequentemente não publicados). Tratamentos que possuem evidências fortes de benefício devem ser oferecidos aos pacientes, assim como tratamentos com evidências fortes de prejuízo devem ser negados ou não recomendados. E quanto a tratamentos embasados em evidências mais fracas (estudos sujeitos a vieses, observacionais não controlados, séries de casos ou meras opiniões de especialistas baseadas em experiência clínica)? Teríamos o dever ou apenas a permissão de utilizá-los?
Tom Beauchamp e James Childress, em seu influente livro de Bioética Principles of Biomedical Ethics14, sustentam que existem tratamentos médicos obrigatórios, tratamentos opcionais (não proibidos, nem requeridos), tratamentos que vão além do requerido (tratamentos supererrogatórios) e tratamentos proibidos (em que é obrigatório não tratar). Considerando que tratamentos médicos não devem ser empregados sem o consentimento do paciente, podemos inferir que identificamos:
a) Condutas médicas obrigatórias;
b) Condutas médicas contraindicadas ou proibidas;
c) Condutas "opcionais".
Dado que os pacientes têm o direito de recusar ordens médicas, é dever dos médicos indicar a eles tratamentos que consistem em alternativas terapêuticas cujos benefícios são garantidos por estudos de maior valor científico, que Beauchamp e Childress denominaram de "tratamentos obrigatórios"14. No entanto, como os médicos não devem exercer sua autoridade para limitar o direito do paciente de decidir livremente sobre sua vida, ou seja, sobre o que pode mudar seu bem-estar, é conclusivo que os médicos tentem convencer coerentemente seus pacientes, oferecendo-lhes todas as informações relevantes que apoiem suas recomendações. E como é possível que o paciente tenha motivos pessoais para recusar o tratamento (incluindo os motivos não médicos), é razoável que o médico também apresente alternativas que sejam capazes de se adequar a seus valores e preferências. Essas alternativas, no entanto, devem ser claras quanto aos respectivos fundamentos científicos, isto é, sobre como cada alternativa é apoiada por bons estudos. Além disso, explicação adequada à capacidade de compreensão de cada paciente a respeito do que se entende por ?maior? ou ?menor? suporte probatório deve ser oferecida.
Dessas distinções, extraímos a seguinte deontologia: cometemos imprudência se realizamos tratamento com evidências fortes de ser prejudicial ao paciente; cometemos negligência se deixarmos de oferecer ao paciente tratamento embasado em evidências igualmente fortes. Todavia, há muitas situações em que temos de decidir com base em evidências de menor qualidade. Nesses casos, não se aplica a conclusão de que, se deixarmos de oferecer algo tido como prejudicial por estudos fracos, agimos em imprudência, ou que agiremos em negligência se deixarmos de prescrever algo ainda não fortemente embasado em estudos fortes ou consagrados. A opinião de especialistas baseada apenas na experiência pessoal ou em relatos de casos, mesmo que amparada em teorias fisiopatológicas plausíveis, não é suficiente para forçar o médico a ter de seguir determinado protocolo. Por outro lado, segue razoável a conduta daqueles que, diante de uma emergência como a pandemia de COVID-19, por exemplo, e da falta de evidências fortes em favor de tratamentos clínicos ou cirúrgicos nesta situação, não adotam posição de excessiva cautela. Também se mostra adequado e honesto com o paciente propor opções terapêuticas baseadas em explicações fisiopatológicas, estudos in vitro e estudos observacionais ainda que metodologicamente limitados, mas, sob certo parecer, promissores.
Estamos, portanto, em um contexto em que pairam dúvidas e divergências para as quais não é possível recorrer a consensos ou evidências científicas sólidas, o que não deve nos impedir de tomar decisões que nos pareçam as mais sensatas e recomendáveis. Como a dúvida não será dirimida (ao menos não em curto prazo), precisamos diante dessa agir com determinação e tolerância. Em um momento como esse, poderemos ter de oferecer a nossos pacientes alternativas terapêuticas com benefício potencial ou provável, muito embora as evidências ainda não sejam fortes ou conclusivas. Além disso, nessa fase de incertezas, nossa responsabilidade de avaliar caso a caso é ainda maior. Quando há evidências fortes, conseguimos nos amparar em protocolos e decidir (nem sempre da forma mais judiciosa e particularizada) convictos de que, em situação de erro, nossa decisão não poderá ser considerada errada do ponto de vista ético. Mas, quando as evidências são discutíveis e há emergência grave, temos de ser minuciosos na avaliação de cada situação clínica específica. Nessas circunstâncias, é ainda maior a nossa responsabilidade de decidir em conjunto com o paciente (shared decision-making). O que vale para um caso, pode não valer para outro. Um paciente de 90 anos com apendicite aguda e COVID-19 positivo, por exemplo, expõe uma situação de difícil decisão. Um protocolo único não servirá para nos garantir a decisão certa, nem eticamente correta (operar versus tratamento clínico; cirurgia aberta versus videolaparoscopia; anestesia geral versus regional). Nessa situação, ao optarmos por não operar o paciente, poderemos ser responsabilizados por dano eventual mais do que por sucesso. Mesmo assim, não devemos temer decidir. Por outro lado, não se pode dizer que erram os que preferem oferecer ao paciente apenas tratamentos já consagrados ou fortemente comprovados.
A manutenção da ameaça da COVID-19 contribui para a tomada de decisões clínicas e cirúrgicas complexas. Essa tomada de decisão deve levar em consideração não só as evidências científicas disponíveis, mas também a exposição e o bem-estar dos pacientes e dos profissionais de saúde e, por último, a conservação de recursos materiais. Os riscos e benefícios de cada decisão devem ser calculados no ambiente limitado da COVID-19. Aceitar e tolerar nesse momento é um caminho para termos unidade na diversidade da medicina em tempos de pouco conhecimento seguro.
REFERÊNCIAS
1. Correia MITD, Ramos RF, Bahten LCV. The surgeons and the COVID-19 pandemic. Os cirurgiões e a pandemia do COVID-19. Rev Col Bras Cir. 2020;47:e20202536.
2. COVID-19: Nota do CBC/SBCO/SBOT sobre suspensão de cirurgias eletivas. 2020 Mar 28.
3. Ramos RF, Lima DL, Benevenuto DS. Recommendations of the Brazilian College of Surgeons for laparoscopic surgery during the COVID-19 pandemic. Rev Col Bras Cir. 2020;47:e20202570.
4. Morrell ALG, Tustumi F, Morrell-Junior AC, et al. Laparoscopic or robotic intraoperative management to minimize aerosol dispersion: Adaptations to the context of the COVID-19 pandemic. Rev Col Bras Cir. 2020;47:e20202558.
5. Ngaserin SH, Koh FH, Ong BC, Chew MH. COVID-19 not detected in peritoneal fluid: a case of laparoscopic appendicectomy for acute appendicitis in a COVID-19-infected patient. Langenbecks Arch Surg. 2020;405(3):353-5.
6. Khan MF, Dalli J, Cahill RA. Gas Aerosol Jetstreams from Trocars during Laparoscopic Surgery- A Video Vignette. Colorectal Dis. 2020 Jun 24. doi: 10.1111/codi.15215. Online ahead of print.
7. Aminian A, Safari S, Razeghian-Jahromi A, Ghorbani M, Delaney CP. COVID-19 Outbreak and Surgical Practice: Unexpected Fatality in Perioperative Period. Ann Surg. 2020;272(1):e27-e29.
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9. COVIDSurg Collaborative. Mortality and pulmonary complications in patients undergoing surgery with perioperative SARS-CoV-2 infection: an international cohort study. 2020 Jul 4;396(10243):27-38. Epub 2020 May 29. Erratum in: Lancet. 2020;396(10246):238. Epub 2020 Jun 9.
10. SAGES Recommendation Regarding Surgical Response to COVID-19 Crisis [Internet]. March 19, 2020. Available from: https://www.sages.org/recommendations-surgical-response-covid-19/. Acessado junho 2020.
11. Mowbray NG, Ansell J, Horwood J, Cornish J, Rizkallah P, Parker A, et al. Safe management of surgical smoke in the age of COVID-19. Br J Surg. 2020 May 3:10.1002/bjs.11679. Online ahead of print.
12. Vigneswaran Y, Prachand VN, Posner MC, Matthews JB, Hussain M. What Is the Appropriate Use of Laparoscopy over Open Procedures in the Current COVID-19 Climate? J Gastrointest Surg. 2020;24(7):1686-91.
13. Guyatt G, Djulbegovic B. Evidence-based medicine and the theory of knowledge. In: Guyatt G, Rennie D, Meade MO, Cook DJ. Users´ guides to the medical literature: A manual for evidence-based clinical practice. 3rd ed. Chicago, New York; JAMA/McGraw-Hill Education; 2019.
14. Beauchamp TL & Childress JF. Principles of Biomedical Ethics. 7th ed. Oxford: Oxford University Press; 2012.