Remonta a idade antiga o interesse médico pela observação do interior do corpo humano. Até o século XX, a propedêutica se baseava apenas no exame físico. O médico poderia observar o interior do corpo humano apenas pelos seus orifícios naturais. A Endoscopia então nasceu com a ginecologia, pois a vagina foi o primeiro orifício a ser examinado através do uso de um espéculo. A partir do século XIX, diferentes autores desenvolveram criativas formas de visualização da uretra, bexiga e útero. Entretanto, foi apenas no início do século XX que, através da adaptação dos avanços tecnológicos, foi possível o acesso ao interior da cavidade abdominal com instrumentos óticos, inicialmente pelo fundo de saco vaginal e posteriormente pela parede abdominal anterior. A Laparoscopia evoluiu significativamente ao longo do século tornando-se método diagnóstico importante em especial na Ginecologia. Mais uma vez, a evolução tecnológica propiciou o desenvolvimento de equipamentos que por sua vez expandiram as possibilidades da técnica que passou de diagnóstica à terapêutica. A grande explosão do método ocorreu a partir do final da década de 80 através do desenvolvimento das Micro-Câmeras e seu acoplamento a ótica laparoscópica. Em 1987, o Dr. Philippe Mouret, de Lyon na França realizou com sucesso a primeira colecistectomia (retirada de vesícula biliar) por esta técnica. Estabeleceu-se então as condições que propiciaram o surgimento da Cirurgia Vídeo-Laparoscópica e sua rápida e espetacular expansão, caracterizando talvez o maior avanço da cirurgia deste século.
O advento da Cirurgia Videolaparoscópica tem alcance não apenas na Cirurgia Geral e do Aparelho Digestivo, como também nas demais especialidades cirúrgicas. O desenvolvimento tecnológico com repercussão na qualidade e variedade cada vez maior dos equipamentos e instrumentais e o desenvolvimento técnico dos cirurgiões determinaram uma evolução muita rápida do método, o qual se tornou altamente especializado.
Em julho de 1990 foi realizada, no Hospital Israelita Albert Einstein (São Paulo, SP), a primeira "cirurgia sem cortes" no Brasil, uma colecistectomia por videolaparoscopia. Conduzida pela equipe chefiada pelo Dr. Thomas Szego, este procedimento cirúrgico histórico é considerado o marco inicial da era videolaparoscópica no Brasil.
E no mundo, como foi?
Artigo publicado em 2001 no Journal of the Society of Laparoendoscopic Surgeons (Reynolds W Jr. The first laparoscopic cholecystectomy. JSLS. 2001; 5(1):89-94) descreve interessantes aspectos históricos sobre esta verdadeira revolução na cirurgia.
Em 1882, Carl Langebuch (1846-1901), cirurgião alemão, realizou a primeira colecistectomia aberta. 103 anos depois, em 12 de setembro de 1985, foi a vez de outro cirurgião alemão, Erich Mühe de Böblingen, executar a primeira colecistectomia por laparoscopia.
Em sua primeira colecistectomia laparoscópica, Mühe utilizou um laparoscópio planejado e construído por ele mesmo (Galloscope). O equipamento possuía uma ótica lateral e um canal de instrumentação (como um single-port), além de condutor de luz para o cabo de fibra ótica e duto para o estabelecimento de um pneumoperitônio. Ao contrário dos franceses que acoplaram a ótica laparoscópica à uma microcâmera (como os ginecologistas já estavam fazendo), Mühe ainda utilizou a visão monocular da antiga laparoscopia. Mühe acessou a cavidade abdominal através de uma punção com agulha de Veress na cicatriz umbilical, onde colocou o seu portal. Eventualmente, a região supra púbica foi utilizada como alternativa para a colocação do portal por razão estética.
Depois de seis cirurgias, Mühe optou por trocar a técnica. Os 88 pacientes seguintes foram operados com abordagem simplificada: colecistectomia laparoscópica sem pneumoperitônio e sem orientação ótica. Usando canal de acesso diretamente no hipocôndrio direito sobre a projeção da vesícula biliar com o seu Galloscope, Mühe utilizou o rebordo costal como um teto ósseo para não necessitar de um pneumoperitônio. Além disso, utilizou uma visão direta e não ótica do campo operatório. Apenas uma incisão na pele de 2,5 cm de comprimento foi necessária em comparação com a técnica multiportal anteriormente descrita com pneumoperitônio. Poderíamos avaliar que Mühe utilizou uma técnica híbrida mais semelhante a mini laparotomia do que a colecistectomia videolaparoscópica multiportal moderna. Adaptando instrumentais utilizados para cirurgia aberta e procedimentos endoscópicos, em especial, um clipador e uma tesoura longa, Mühe desenvolveu a técnica de clipagem do pedículo biliar, muito importante para a implantação e disseminação da colecistectomia laparoscópica.
Mühe executou um total de 94 destes procedimentos. Foi apenas dois anos após que os cirurgiões franceses, Phillipe Mouret (Lyon, 1987), seguido de François Dubois (Paris, 1988) executaram colecistectomias que, por muitos anos, foram consideradas como marco inicial da era videolaparoscópica. O definitivo reconhecimento de Mühe como o verdadeiro progenitor da colecistectomia laparoscópica demoraria alguns anos para acontecer. Em 1986, Mühe apresentou suas descobertas perante a Sociedade Cirúrgica Alemã em seu Congresso anual. O público ficou cético em relação às suas alegações e a Sociedade rejeitou o seu relato sobre a colecistectomia laparoscópica. Mühe ficou muito desanimado. Foi difícil para os cirurgiões daquela época, que trabalhavam com a premissa de que grandes problemas exigiam grandes incisões, apreciar uma técnica filosoficamente minimamente invasiva. Mühe percebeu mais tarde que parte do seu fracasso se deveu a não buscar apresentar suas técnicas para um público como o norte-americano, por exemplo. Ele publicou 342 artigos entre 1965 e 1983, porém apenas 7% deles em Inglês. Em 1990, Mühe enviou um artigo sobre as suas primeiras colecistectomias laparoscópicas ao American Journal of Surgery. Seu artigo foi rejeitado. Neste mesmo ano, durante o Congresso da Sociedade de Cirurgiões Gastrointestinais Endoscópicos Americanos (SAGES) em Atlanta (EUA), Perissat, Berci, Cuschieri, Dubois e Mouret foram reconhecidos pela associação como precursores mundiais da colecistectomia laparoscópica. Mühe não foi citado. No início da década de 1990, Mühe conheceu François Dubois de Paris e lhe comunicou que havia realizado a primeira colecistectomia laparoscópica. Dubois simplesmente nunca tinha ouvido falar do trabalho do cirurgião alemão.
A redenção viria durante o 109º Congresso da Sociedade Cirúrgica Alemã (GSS) em 21 de abril de 1992. Mühe recebeu o GSS Anniversary Award por seu trabalho pioneiro em cirurgia endoscópica. Nesta cerimônia, sua colecistectomia laparoscópica foi descrita por Franz Gall, presidente da GSS, como uma das maiores realizações originais da medicina alemã na história recente. Em 26 de março de 1999, Erich Mühe apresentou a palestra Karl Storz de abertura do Congresso anual da SAGES em San Antonio (EUA) sobre novas tecnologias: "A primeira colecistectomia laparoscópica: superando os obstáculos no caminho para o futuro". Naquele evento, Erich Mühe foi reconhecido por mais de 1.000 cirurgiões de 41 países do mundo como o verdadeiro inventor da colecistectomia laparoscópica e recebia, finalmente, a merecida aclamação mundial por seu trabalho pioneiro.
No dia 25 de julho de 1990, a revista Veja publicou nota sobre uma "cirurgia sem cortes" realizada no Hospital Albert Einstein em São Paulo, SP. Publicada uma semana após o dia da cirurgia (terça-feira, dia 17 de julho), a pequena nota descreve a primeira colecistectomia por videolaparoscopia realizada no país. A equipe foi composta pelo Dr. Thomas Szego, Dr. Caio Parente Barbosa, Dr. Sergio Roll, Dr. Eduardo Werebe e Dr. Juan Miguerez (anestesista).
Uma transmissão ao vivo no último dia 17 de julho pela rede social do Instagram recordou esse momento muito importante da cirurgia brasileira: os trinta anos da primeira colecistectomia por videolaparoscopia, marco inicial da era videolaparoscópica no país. Durante o bate-papo, Thomas Szego e Sergio Roll relembraram com emoção e bom humor diversas nuances e bastidores desta história.
Em 12 de setembro de 1985, o cirurgião alemão Erich Mühe de Böblingen, Alemanha executou a primeira colecistectomia por laparoscopia. Dois anos após, o cirurgião francês, Phillipe Mouret (Lyon) realizou a primeira colecistectomia laparoscópica com auxílio de uma vídeo-câmera, procedimento considerado por muitos anos como símbolo da ascensão da videolaparoscopia no mundo.
Os pioneiros demoraram alguns anos para apresentar o procedimento perante sociedades científicas. Quando o fizeram, foram recebidos com ceticismo e descrédito, como Mühe em 1986 perante a Sociedade Cirúrgica Alemã em seu Congresso anual. Os franceses esperaram mais de dois anos para finalmente mostrarem sua experiência para a demais cirurgiões franceses.
No Brasil, a videolaparoscopia era praticamente desconhecida. Ao ler sobre o assunto, Thomas resolveu ir atrás de conhecimento. Inicialmente, tentou viabilizar uma ida à França que não se concretizou. Então conseguiu oportunidade de visitar as Universidades de Maryland e John Hopkins em Baltimore, EUA. Na época, os cirurgiões Thomas Gadacz e Mark Talamini, do Hospital da Universidade John Hopkins, já haviam operado cerca de 80 colecistectomias por videolaparoscopia.
Auxiliado financeiramente pelo seu pai, Thomas embarcou com muitas dúvidas e uma certeza: se ele necessitasse operar a sua própria vesícula biliar, queria uma grande e bela incisão no abdome! Bastou uma semana acompanhando o trabalho dos cirurgiões americanos para Thomas mudar completamente a sua visão. Retornou ao Brasil convicto que a melhor opção era a via videolaparoscópica.
Logo ao chegar ao Brasil, Thomas marcou a primeira cirurgia. Ele conseguiu o fundamental apoio da direção do Hospital Albert Einstein que o autorizou a realizar algumas cirurgias sem custo para os pacientes. A primeira paciente, portadora de colelitíase sintomática, foi uma funcionária do Hospital de Clínicas da Universidade Estadual de São Paulo (HC), onde Thomas trabalhava como médico contratado.
Thomas vinha acompanhando os ginecologistas Caio Parente Barbosa e Claudio Bausbaun que possuíam grande experiência em laparoscopia ginecológica e já realizavam videolaparoscopias com a utilização da inovadora "torre de vídeo" e sua microcâmera da empresa alemã Karl Storz. Sua representante no Brasil, a H. Strattner ofereceu importante apoio técnico e instrumental naquele momento. Obviamente que Thomas possuía poucas horas de treinamento prático em simulação cirúrgica, inexistente no Brasil e ainda pouco disponível mesmo no exterior.
O maior receio de Thomas era o acesso inicial à cavidade abdominal e, neste sentido, Caio Parente Barbosa auxiliou muito com sua experiência prévia. Ele também participou do procedimento cirúrgico. A cirurgia foi longa, com quase três horas de duração, mas muito bem sucedido, sem intercorrências.
Obviamente, o evento gerou reações negativas de alguns colegas dentro do Hospital Albert Einstein, inclusive com tentativas de criminalização e publicação de matérias negativas na imprensa. Mas o apoio da direção do Hospital Albert Einstein (e os bons resultados das cirurgias) seguraram a esperada onda negativa de colegas reacionários. Já no HC, o chefe do Serviço de Cirurgia pediu a demissão de Thomas. O problema foi contornado e um ano depois foi criado o Serviço de Cirurgia Videolaparoscópica do HC com a coordenação do... Chefe do Serviço de Cirurgia. E com a participação de Thomas.
Thomas relata que nas primeiras cirurgias muitos colegas acompanhavam as cirurgias de dentro da sala cirúrgica.
Em agosto de 1990, durante o Congresso Internacional de Cirurgia em São Paulo, SP, Thomas teve a oportunidade de apresentar o vídeo desta sua primeira colecistectomia videolaparoscópica em uma sessão de vídeo livres. Sessão esvaziada, mas com a presença ilustre de Barry McKernan, primeiro cirurgião americano a realizar uma colecistectomia por videolaparoscopia (junho de 1988). José Verbicário Carin de Nova Friburgo, RJ, um dos pioneiros da videolaparoscopia no Estado do Rio de Janeiro (com o Dr. Osmar Creuz - trouxeram juntos da Alemanha a primeira torre de vídeo, pessoalmente!) "descobriu" a nova técnica neste dia, nesta sessão. Carin buscava uma sala escura e quieta para dormir após o almoço e, sem querer, acabou na sessão de vídeos livres!
Outro divertido fato é que a primeira microcâmera que Thomas utilizava para as cirurgias esquentava muito, apagando com frequência durante os procedimentos. A equipe tinha que esperar a microcâmera esfriar para retornar a operar. Para resolver o problema, gelo era colocado em cima do equipamento para resfriá-lo.
Em outubro de 1990, Thomas e seu grupo organizaram o primeiro curso teórico com cirurgias ao vivo no Hospital Albert Einstein. Durante o curso, Thomas pediu autorização à uma das pacientes operadas para que fosse entrevistada pelos colegas. Chegando lá, ao ser inicialmente perguntada como se sentia, a paciente falou que estava com muita dor! Foi um choque! No entanto, a seguir ela completou: estava com muita dor... na mão onde havia sido colocado o acesso venoso! No abdome, nada!
O primeiro curso prático com videocirurgia experimental em suínos vivos ocorreu no HC em 1991. Mark Talamini veio de Baltimore para este curso. Thomas conta que no almoço foi servido ao eminente convidado internacional uma bela feijoada rica em pedaços de porco! Gafe total!
Thomas, assim como Sergio Roll, participaram em julho de 1991 da fundação da Sociedade Brasileira de Videocirurgia (SOBRACIL), hoje renomeada Sociedade Brasileira de Cirurgia Minimamente Invasiva e Robótica. Neste ano, a SOBRACIL realizou o seu primeiro congresso nacional no Hotel Transamérica em São Paulo, SP.
Em 1992 foi a vez da fundação da Associação Latino-Americana de Cirurgia Endoscópica (ALACE). 1993 foi o ano da realização do primeiro Simpósio Internacional de Cirurgia Videolaparoscópica em Porto Alegre, RS com a participação de diversos cirurgiões estrangeiros. Um ano depois, a SOBRACIL organizou seu segundo congresso nacional no Hotel Nacional na cidade do Rio de Janeiro, RJ.
Thomas criou em 1992 um dos primeiros cursos teórico-práticos continuados em cirurgia videolaparoscópica do país no Hospital Jaraguá em São Paulo, SP.
Não há dúvidas que o perfil pessoal e profissional de Thomas Szego e sua sólida formação docente, além de bom senso, conhecimento e determinação, foram fundamentais para a disseminação e desenvolvimento da cirurgia videolaparoscópica no Brasil. Thomas viajou muito por todo país para cirurgias demonstrativas. Em Antônio Prado, pequena cidade da serra gaúcha, foi homenageado com a deferência do seu nome para o bloco cirúrgico!
Após uma hora de uma conversa recheada de emoção, humor e lembranças, Thomas concluiu constatando que questões éticas que envolvem a prática profissional nos dias de hoje, muito mais rígidas, talvez configurassem barreira de difícil superação para o desenvolvimento da videolaparoscopia.
Thomas Szego e Sergio Roll iniciaram a pavimentar o (longo) caminho que nós, cirurgiões brasileiros, seguimos para alcançar este momento atual de ampla, segura e efetiva utilização da videocirurgia na nossa prática profissional. Nosso agradecimento sincero e admiração aos mestres que tiveram a mente aberta, coragem e decisão necessárias para iniciar a era videolaparoscópica no Brasil!
O dia 11 de setembro de 2001 ficará marcado na lembrança como o dia do ataque às torres gêmeas do World Trade Center em Nova York. Televisionado para bilhões de pessoas e com parte dos acontecimentos sendo assistido ao vivo, o atentado é um dos principais e mais significativos eventos do século XXI, tendo gerado consequências geopolíticas, econômicas e sociais que modificaram a humanidade e continuam influenciando ainda hoje em dezenas de países do mundo.
O que muitos não sabem é que o século XXI também presenciou outro grande evento na mesma cidade e apenas quatro dias antes do famoso "11 de Setembro". The Lindbergh Operation", a primeira telecirurgia transoceânica realizada no mundo, foi comandada pelo cirurgião francês Jacques Marescaux e eletrizou o mundo cirúrgico. Sentado em um console robótico na cidade de Nova York, Marescaux removeu a vesícula biliar de um paciente em Estrasburgo, França - a mistura perfeita de tecnologia da informação e cirurgia. Assim como o voo solo de Lindbergh através do Atlântico revolucionou nosso pensamento, o mesmo aconteceu com a cirurgia de Marescaux, provando que as distâncias não eram mais um obstáculo na cirurgia. Em uma transmissão ao vivo direto de Estrasburgo, França (maior centro de treinamento em cirurgia da Europa), em julho último, Marescaux, fundador e diretor do IRCAD (Instituto de Treinamento em Técnicas Minimamente Invasivas e Cirurgia Robótica), contou esta interessante história.
Em 1992, a cirurgia enfrentou mudanças inevitáveis, passando da era industrial para a era do computador. Nesse contexto, Jacques Marescaux teve a ideia de criar um centro original de pesquisa e treinamento. Ele buscava, de forma inovadora, alinhar as técnicas cirúrgicas da época à tecnologia, cada vez mais difundida em diversos outros setores. Em 1994, o IRCAD foi inaugurado no Hospital Universitário de Estrasburgo. Desde a sua criação, o IRCAD ganhou fama mundial como um instituto líder em pesquisa e educação, um passo importante em direção ao futuro da cirurgia.
Nesta época, buscando um financiamento para um projeto de inovação em cirurgia, Marescaux concluiu que a robótica seria a chave para alcançar o recurso financeiro. Marescaux já possuía experiência de mais de 100 procedimentos robóticos utilizando as plataformas disponíveis na época. Assim, configurou-se a ideia da utilização de uma plataforma robótica para a realização de uma telecirurgia. Mas não seria qualquer telecirugia. Seria uma telecirurgia completa realizada por uma equipe de cirurgiões franceses localizados em Nova York em um paciente em Estrasburgo (a uma distância de vários milhares de quilômetros), usando soluções de telecomunicações baseadas em serviços de alta velocidade e uma plataforma robótica. Marescaux conta que muitas dificuldades tiveram que ser transpostas para a realização do procedimento. Talvez a maior dificuldade fosse a velocidade de transmissão de dados. Trabalho desenvolvido junto com as forças armadas americanas pelo Dr. Richard Satava, cirurgião americano famoso pelas pesquisas na área de inovação tecnológica e educação em cirurgia, já tinha demonstrado que, para uma precisa atuação à distância, não mais que 150 a 200 milissegundos de espera (delay) seriam aceitáveis para a segurança do procedimento. Neste sentido, a utilização de satélite para a transmissão seria impossível. A opção foi utilizar cabos submarinos de fibra ótica transoceânicos que uniam os Estados Unidos à Europa. O problema é que estes cabos teriam que ser alugados por um período mínimo de seis meses ao preço de um milhão de dólares! Neste momento, interferência do então presidente francês Jacques Chirac viabilizou o uso dos cabos sem custos para o IRCAD. Foi a primeira vez na história médica que uma solução técnica se mostrou capaz de reduzir o atraso de tempo inerente às transmissões de longa distância o suficiente para possibilitar esse tipo de procedimento. O governo francês também manteve salas já desocupadas no edifício da France Telecom em Nova York apenas para a realização do projeto. O ambiente teve que ser adaptado para a colocação do robô. A paciente selecionada, feminina, de 68 anos e portadora de colelitíase sintomática não complicada, prontamente aceitou ser operada a distância. Treinamentos experimentais com suínos vivos foram realizados com sucesso.
Poucos dias antes da data prevista para a cirurgia, um novo obstáculo quase mudou a história. A Food and Drug Administration (FDA) proibiu a realização da cirurgia nos Estados Unidos. Novamente o governo francês entrou em campo, designando a sala da France Telecom como uma área do território da França em solo americano para viabilizar a cirurgia.
A operação foi realizada com sucesso no dia 07 de setembro de 2001 por Marescaux e sua equipe do IRCAD. O procedimento durou 45 minutos e transcorreu sem qualquer intercorrência. De Nova York, o cirurgião controlou os braços do Sistema Cirúrgico Robótico ZEUS, projetado pela empresa Computer Motion, para operar o paciente. Marescaux comentou que ao final da cirurgia um grande peso saiu de suas costas, pois a responsabilidade era gigantesca para que todo o evento fosse bem-sucedido.
O sucesso do projeto foi resultado de uma parceria estreitamente coordenada entre o IRCAD, a France Telecom, Computer Motion e EITS (Instituto Europeu de Telecirurgia.
Comentando sobre a cirurgia, Marescaux disse acreditar que a Lindbergh Operation foi uma demonstração da viabilidade de um procedimento cirúrgico totalmente seguro realizado remotamente. Ele acredita que a primeira operação transatlântica foi a complementação de uma revolução no campo da cirurgia. Em dez anos, a chegada da cirurgia minimamente invasiva com a introdução de videocâmeras para a realização de procedimentos no abdome e tórax sem necessidade de grandes incisões; a introdução da cirurgia assistida por computador, em que a inteligência artificial aumentava a segurança dos movimentos do cirurgião durante um procedimento, tornando-os mais precisos, ao mesmo tempo em que introduzia o conceito de distância entre o cirurgião e o paciente; e, finalmente, a demonstração da viabilidade de um procedimento transatlântico foram marcos ricamente simbólicos da globalização dos procedimentos cirúrgicos. The Lindbergh Operation possibilitou imaginar que um cirurgião poderia operar um paciente em qualquer lugar do mundo. Marescaux compreendeu que o IRCAD deveria acoplar a educação e treinamento em cirurgia à inovação técnica e tecnológica. Para que isto fosse possível, o seu Instituto teria que incorporar ao quadro de profissionais da área médica especialistas em engenharia, tecnologia e comunicação. Definiu-se, então, o verdadeiro DNA do IRCAD: um centro direcionando à pesquisa e ao treinamento para o desenvolvimento de técnicas cirúrgicas menos invasivas, equipamentos e instrumentais.
O IRCAD persistiu inovando. Em abril de 2007, a equipe do Instituto em Estrasburgo realizou o primeiro procedimento cirúrgico endoscópico transluminal por orifício totalmente natural (N.O.T.E.S.) no continente europeu - Operação Anubis - por via vaginal.
O desenvolvimento paralelo de uma estrutura de treinamento foi a extensão lógica do trabalho inovador do IRCAD. Todos os anos, cerca de 6.200 cirurgiões de todo o mundo são treinados por uma equipe de 642 especialistas internacionais. O IRCAD tornou possível para cirurgiões de todo o mundo obter habilidades de alto nível e, como resultado, o Instituto manteve sua posição como embaixador da excelência francesa.
Referências
1. Marescaux J, et al. Transatlantic Robot-Assisted Telesurgery. Nature 2001;413:379-380.
2. Ircad and Coffee. https://youtu.be/TFTdK4s1dpY
3. https://en.wikipedia.org/wiki/Lindbergh_operation
4. https://en.wikipedia.org/wiki/Jacques_Marescaux
5. www.websurg.com